Hoje fui dar um passeio até...
Santarém observa a lezíria do alto das suas colinas. No burgo prevalecem as belas construções que fizeram dele um dos mais apetecidos do reino, Ali assentaram arraiais várias Cortes e os aristocratas elegeram-na para as suas caçadas. Foi a presença destes nobres que favoreceu o desenvolvimento da arquitectura e das artes sumptuárias, transformando Santarém num dos melhores exemplos do estilo gótico.
Este passeio abrange um conjunto de edifícios que, pelas suas características arquitectónicas e de decoração, levaram o historiador Vergílio Correia a designar Santarém a capital do gótico português, percorre as zonas de comércio, com as antigas residências dos mercadores, dos cavaleiros e dos homens de ofícios, e termina na área central da vila medieval, gérmen da vida cristã e ocupada pelos nobres ligados à Corte e ao serviço da Igreja.
A magnífica Igreja de Santa Clara, na Avenida Gago Coutinho e Sacadura Cabral, é o único vestígio que resta do antigo Convento das Clarissas, uma vez que as celas e o claustro foram demolidos no início do século. A fundação do templo remota ao reinado de D Afonso III e, segundo Vítor Serrão, «representa o triunfo do gótico primevo como arte mendicante de dependência cristã». O templo de três longas naves de oito tramos, tem na fachada principal uma bonita rosácea de dupla arquivolta torácida e colunelos radiantes estrelando o centro. O interior é visitável em horário laboral e vale sobretudo pela abóbada gótica de nervuras cruzadas que encima a capela-mor.
Visitada a igreja, siga em direcção à Rua 31 de Janeiro para, do lado direito, subir o Jardim da República e visitar o Convento de S. Francisco. Autêntico museu da arquitectura portuguesa dos secs. XIII a XVI, e também o mais antigo testemunho da arquitectura das ordens mendicantes em solo nacional. Fundado em 1242 por vontade de D. Sancho II, a sua construção arrastou-se até ao reinado de D. Fernando , que o enriqueceu com o coro alto e o belo claustro. No interior são ainda visíveis testemunhos arquitectónicos de várias épocas: manuelino, renascença e barroco. Após a extinção das ordens religiosas, em 1834, o convento foi profanado, a igreja transformada em palheiro e o claustro em cavalariça; o coro foi utilizado como refeitório de soldados e alguns túmulos em bebedouro para cavalos. Em 1940, um incêndio no edifício, que, a partir daí, foi submetido a trabalhos de recuperação. Actualmente está a ser objecto de escavações e prevê-se um projecto de melhoramentos que incluirá a construção de um anfiteatro para concertos. As escavações, conduzidas por Maria Magalhães Ramalho, têm-se centrado nos vestígios funerários, que podem contribuir para a compreensão do nosso relacionamento com a morte.
Retorne à Rua 31 de Dezembro e desça as Escadinhas das Figueiras, para observar a coluna do varandim que, segundo uma lápide colocada no edifício pertenceria «… à varanda do Palácio Real onde o Rei Dom Pedro assistiu à execução dos assassinos de Inez de Castro».
De novo na Rua 31 de Dezembro, siga em direcção à Praça Sá Bandeira (ou do Seminário). É uma das praças mais centrais e é daqui que os forasteiros geralmente partem para visitar toda a cidade. É ladeada por belos e importantes edifícios. Siga pela antiga Rua Direita, actual Rua Serpa Pinto, espinha dorsal da vida comercial medieval e das transações mercantis. Esta rua fazia ligação com o bairro da prostituição, onde as «molheres faziao pellos homês». È ladeada por alguns palacetes aburguesados. Destaque para as construções com dois pisos, as paredes revestidas a azulejos bicolores, rematadas por balaustrada, varandas e janelas de ferro forjado. Alguns edifícios, pelo tipo de decoração, anunciam o estilo arte-nova. De referir o edifício com os n.ºs 179-185, onde terá nascido, em 1555, frei Luís de Sousa.
Se quiser um cheirinho da antiga mouraria desça, do lado esquerdo, a Travessa das Caldas e percorra as pequenas ruelas esquecidas no tempo. Não deixe de se dirigir à Travessa dos Surradores (nesta zona as ruas ainda preservam a antiga toponímia, ligada quase sempre aos ofícios dos habitantes), onde (no n.º 9) dois mascarões de pedra decoram de forma curiosa o edifício. Trata-se de duas mísulas romanas que encimam a Casa dos Mascarões. Regresse à Rua Serpa Pinto para seguir até à Praça Visconde da Serra Pilar. Trata-se de uma praça ladeada por edifícios aristocráticos de vários pisos que ainda denunciam, pela sua estrutura arquitectónica, o tipo de pessoas que os habitam. Foi num deles, sem número, que funcionaram os Paços do Concelho.
A Praça Visconde da Serra do Pilar era o espaço público por excelência. Hoje perdeu muita dessa função mas mantêm um belo largo, que merecia ser usado em actividades recreativas, incluindo a representação de festas públicas medievais e renascentistas, quando a animação de rua era constituída por espectáculos de saltimbancos, jogos de canas e touradas. No largo do mesmo nome fica a Igreja de Marvila, uma das mais antigas sedes paroquiais da cidade, erigida na sequência da Reconquista. Foi totalmente reconstituída por ordem de D. Manuel I, nos inícios do séc. XVI, tornando-se num dos mais importantes testemunhos do manuelino em Santarém. O interior é totalmente revestido por azulejos, executados entre 1617 e 1642, azuis e brancos e com composições de azul e amarelo. A capela-mor é formada por abóbadas polinervuradas e bocetes com cruzes e esferas armilares. Na fachada, destaque para uma torre rematada por coruchéu piramidal e de um belo portal manuelino.
Dirija-se à Rua 1º de Dezembro para daí descer a Rua Júlio d’ Araújo até ao Largo Pedro Álvares de Cabral, onde uma placa comemorativa relembra a descoberta do Brasil. É nesta praça que está edificada uma das igrejas mais bonitas da cidade. Trata-se da Igreja de Nossa Senhora da Graça, que justifica o triunfo do gótico flamejante em Santarém. A construção do templo, embora pertencente aos monges agostinhos, foi financiada pela alta nobreza local, representada pela família Teles de Menezes, que aí mandou erguer o seu panteão. O interior, de planta rectangular, é constituído por três naves de cinco tramos, com pilares cruciformes de capitéis esculpidos. O trabalho de pedraria atinge a sua máxima perfeição na fachada da igreja. O pórtico em querena , com delicados capitéis vegetalistas, é encimado por um friso de florões que incorporam o remate do arco conopial. Este conjunto é completado por uma rosácea flamejante de singular lavor, onde as curvas e contracurvas, com espaços intercalares, permitem a penetração da luz.
Retorne à Rua 1º de Dezembro, seguindo até à Rua Conselheiro Figueiredo Leal. Aqui se situam dois dos mais característicos edifícios da cidade: do lado esquerdo, a Torre das Cabaças e, do direito, a Igreja de S. João de Alporão.
A Torre das Cabaças, ou do Relógio, foi, segundo a tradição, mandada construir por D. Manuel I. Numa das deslocações que fez a Santarém, o Rei terá perguntado à vereação do município se a vila necessitava de alguma obra importante, ao que lhe responderam que carecia de uma torre com relógio. O monarca mandou logo que as obras se iniciassem. Voltando o Rei à vila para ver o uso que haviam feito da régia concessão, deparou-se-lhe um sino em cima de uma torre pendurado em quatro varões de ferro. Perante tamanha desilusão, mandou Sua Alteza que colocassem sete cabaças ocas no cimo da torre para que, daí em diante, ficassem perpetuadas as sete cabeças ocas dos sete vereadores que haviam mandado construir a torre. É hoje um dos ex-libris da cidade e as cabaças ainda lá permanecem, embora oficialmente se diga que a sua função era promover a ressonância dos sinos quando batessem as horas. Segundo Vítor Serrão, não têm fundamento datá-la pelo reinado de D. Manuel I, uma vez que já em 1462 se encontram referências à sua existência.
Em frente fica a Igreja de S. João de Alporão. Há quem defenda que assenta sobre um templo da época romana, uma vez que aí se teria lido o édito do Imperador Augusto «Ut Adscriberetur Universus Orbis» (Para que se saiba em todo o Universo). Contudo, os estilos românico e gótico que revela levam os historiadores a datá-la da transição entre sécs. XII e XIII. No último quartel do séc. XVIII, por deliberação camarária, foi demolida a porta da igreja e uma torre circular de estilo românico. Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, foi adquirida por um particular, que a transformou em arrecadação. Nos finais do século XIX o edifício foi transformado em teatro , tendo aí sido representadas as peças românticas então em moda. Em 1882, uma vez reconhecido o seu valor histórico e feitas obras de restauro, abriu ao público como Museu Distrital. Actualmente, expõe peças arqueológicas de elevado valor.
Continue pela mesma rua em direcção às Portas do Sol. Pelo caminho encontrará os Serviços Culturais da Câmara Municipal e o Cine-Teatro Rosa Damasceno, hoje em ruínas. Logo a seguir um moderno edifício da autoria da arquitecta Manuela Clara, onde os varandins de ferro forjado da região realçam a beleza sóbria do prédio de habitação. Uma observação atenta revela que as soluções utilizadas são simples, demonstrando, se tal fosse necessário, que é possível construir com economia sem fazer «caixotes» - basta saber projectar.
Prossiga pela Avenida 5 de Outubro sem deixar de prestar atenção ao conjunto de moradias, datáveis dos inícios do séc. XX, que percorrem o passeio do lado direito, em especial o belo «challet Ofélia», onde as influências da arquitectura brasileira estão bem presentes. Se descer uma pequena rua do lado esquerdo encontra uma das portas de entrada da cidade, Trata-se da Porta de São Tiago. Regresse à Avenida 5 de Outubro para, já no Largo da Alcáçova, visitar aquela que é a mais recente e importante descoberta da ocupação romana em Santarém. Trata-se de um pódio de templo romano com cerca de 15 metros de largura, que se presume datar do século I a. C. e foi descoberto devido às obras de recuperação de um palacete para turismo de habitação. Embora esta estrutura venha a ficar integrada em espaço privado, poderá ser visitada em regime de marcação. Ao lado situa-se a Igreja de Santa Maria da Alcáçova, que foi construída pelos Templários após a conquista de Santarém aos mouros. Na fachada encontra-se uma lápide que atribui a sua fundação a D. Afonso Henriques. Trata-se de um templo de construção singela, encimado por uma torre sineira. O interior, de três naves, é rematado por arcos de volta redonda. O espaço interior do edifício foi submetido a trabalhos de escavações, sob orientação da arqueóloga Catarina Viegas. Os trabalhos puseram a descoberto um espaço de cemitério e vestígios do período romano. Nas colunas, sob o estuque, restam vestígios de pintura.
Visitada a igreja, entre nas Portas do Sol, um dos mais belos miradouros da cidade. A ocupação da colina remota a tempos recuados, como se depreende dos vestígios materiais postos a descoberto pelas recentes escavações arqueológicas que aqui se têm realizado. É o caso das tinturarias muçulmanas e das cisternas árabes. Este espaço, embora ajardinado, merece um arranjo histórico digno das vicissitudes de que foi palco. Ao longe, a lezíria convida à descoberta das planuras ribatejanas.
Descubra.
Ao entrar na Avenida 5 de Outubro, rumo ao Miradouro das Portas do Sol, não dispense um curto desvio por uma rua que corre paralelamente, à esquerda , e não têm saída. Mas tem uma curiosidade (também visível do gradeamento que ladeia a avenida). Mesmo ao fundo, e de novo à esquerda, observe a chaminé de cariz popular. O autor aproveitou as abas de cobertura para esculpir uma espécie de braços. Por cima colocou uma cabeça, angélica e coroada. Por fim desenhou-lhe dois sexos… mas diferentes. Seios no respectivo lugar e sexo masculino também no sítio certo. Ou seja, figurou o fenómeno biológico do hermafroditismo. Aqui, o debate acerca do sexo dos anjos mantém-se aceso… e até deita fumo.
Nota: mais tarde ei colocar as fotos do passeio
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